Publicado em: 10/10/2019
Foram poucos os filmes que me fizeram parar e analisar cada cena, a construção do personagem, sua morte e seu renascimento, com uma força vinda da destruição de seus medos e meias-verdades internas impostas.
O filme Coringa retrata uma Gothan City imersa no caos, onde o lixo, ratos e a violência imperam livremente diante de uma população neurótica, mal educada e cruel. Cuja elite se diz merecedora do luxo, da fama e do poder em detrimento da massa que sustem todo o seu glamour.
Gothan é o arquétipo exacerbado da cidade que não deu certo.
Dentro deste contexto, vemos um homem com problemas mentais tentando sobreviver a uma selva de pedras, que o ignora e o massacra dia após dia, gerando um sentimento de impunidade, dor, impotência e infelicidade.
Arthur é um ser humano em busca de um significado real para sua vida. Algo que o liberte da prisão interna. Prisão esta que faz com que ele pense que não existe. E que deseje permanecer no sanatório.
“Eu me sentia melhor quando estava preso no sanatório.” – Arthur Fleck.
No percurso do filme, Arthur se vê diante de uma assistente social, que segue um roteiro de perguntas, cujas respostas não são ouvidas verdadeiramente. O personagem principal deixa de ser acolhido, respeitado e compreendido.
“A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse.” – Arthur Fleck.
Interessante observar, o fato do personagem ter que tomar sete tipos de medicamentos. Obviamente, medicamentos para controlar os sete instintos humanos, erroneamente atribuídos aos sete pecados capitais (gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça, vaidade).
Estamos falando aqui da jornada do herói, com tomadas de decisões precisas, levando o personagem a evoluir passo a passo diante de sua árvore da vida e da morte.
E apesar de sua negação a própria existência, dentro de Arthur entra em ação o sentimento de preservação, de sobrevivência, ao saber que o governo cortou seu acesso ao tratamento e que ele ficará sem seus medicamentos. Algo inaceitável e ainda mais cruel.
Ele sofre. Sua dor, sua culpa e seu sentimento de inexistência se refletem em seus atos, ao não se alimentar direito e a fumar constantemente.
Em seu mundo, Arthur tenta cumprir sua missão de levar o riso para as pessoas ao seu redor. E ele até tenta. Ele observa as pessoas, ele as imita... Ironia ou não, o seu transtorno mais visível vem em forma de riso, risada patológica, aparece em situações de extremo desespero e nervosismo.
Ele tem plena consciência de sua doença e ele a coloca no papel, em seu diário. E utiliza frases como:
“Só espero que minha morte valha mais centavos que minha vida.” – Arthur Fleck.
Claro que ninguém o compreende, a visão dele do mundo é única. Sua lente mental apenas reage ao que lhe foi imposto. Sua luta interna é gigantesca. Sua sombra impera através de pensamentos negativos constantes. E ele luta incessantemente contra si.
Você faz as mesmas perguntas todos os dias. “Como vai seu trabalho? Está tendo pensamentos negativos?” Só o que eu tenho são pensamentos negativos. – Arthur Fleck/Coringa.
Ele tem consciência do certo e do errado, quando um colega de serviço dá para ele uma arma de fogo. E é por causa dela que ele perde seu emprego.
Neste ponto, o personagem esta cansado, sem esperanças e sem direção. Momento em que acontece sua libertação interna, ao se defender do mundo, matando três pessoas.
Ele retorna para casa e se sente pleno e livre. Sua dança é cheia de significados e de uma leveza intensa.
O personagem passou pelo véu da não existência. O limite entre a sanidade e a insanidade se quebra. Ele se descobre e retira de suas costas o peso da invisibilidade imposta pela sociedade. Verdadeiramente um tiro de misericórdia, que afeta seu ser mais intimo e o trás a tona, gerando um novo ser, presente, ativo e avassalador: o Coringa.
Não há culpa ou medo em seus atos. Afinal, não há nada a perder. E ele começa a entender que se tornou visível, quando estes assassinatos ganham a mídia e provocam uma revolução na cidade.
O personagem esta quase pronto para matar o Arthur e o Coringa existir. E nem por isso, a vida deixa de lhe mostrar a verdade sobre a mentira de sua vida.
Ele descobre que é adotado por uma mãe com sérios problemas mentais, que atentou contra sua vida. Seu mundo cai. E ele entende que esta só. Obviamente, sua reação teve uma lógica fúnebre: ele eliminou este problema, matando sua mãe sem o menor remorso. E voilá! Seu personagem esta completo: o Coringa nasceu.
“Durante toda minha vida, eu nem sabia se eu realmente existia. Mas eu existo. E as pessoas estão começando a perceber.” – Arthur Fleck/Coringa.
E que toda sua loucura seja perdoada. Um personagem rico, complexo, irônico, devastador. Ele é o que é.
Falem mal ou falem bem. Joaquim Phoenix deu vida e emprestou sua sensibilidade para construir um personagem fascinante, sensível, amoral e integro. As expressões em seu rosto, seu trejeito ao caminhar, a leveza de sua dança... Seu riso irônico, sua quase felicidade e sua inteligência exacerbada.
Valeu cada centavo. Valeu cada minuto. Recomendo este filme.
Obrigada por me lerem.
Fonte: Own